terça-feira, 7 de julho de 2009

Os valores...

Charge elaborada pelo cartunista francês Emmanuel Chaunu

Após fazer uma breve análise da charge, achei interessante compartilhar com vocês alguns pensamentos que me ocorreram.
Primeiramente, o artista é francês e, ao produzir essa charge, faz referência ao ensino na França. De qualquer forma, a charge não se detém às fronteiras nacionais e pode ser utilizada para se pensar a história do ensino no Brasil. Isso fica patente a partir do momento em que alguém fez a tradução da frase para o português e passou a divulgar o desenho no círculo virtual brasileiro, alcançando grande repercussão.
A charge apresenta dois períodos da história do ensino no Brasil: 1969 e 2009. A cena de 1969 é pintada em tons de sépia, próxima a uma fotografia envelhecida que nos faz sentir certo saudosismo em relação ao passado. Os pais figuram como pessoas respeitáveis, austeras, autoritárias, certas de si. Comportam-se como modelos morais para seus filhos e, por isso, exigem explicações precisas para seu péssimo rendimento escolar. A professora aparece impassível, rígida, demonstrando autoridade e conhecimento. Uma mulher séria, certa de seu poder. A criança, por sua vez, uma coitada. Curvado sobre si mesmo, o menino não encara ninguém. Apresenta uma apatia profunda, profundas olheiras e profundo temor. Teme os pais, a professora, os amigos, o cachorro, seus próprios sonhos.
A cena de 2009 é colorida, rosa, azul e verde. Os pais não apresentam a mesma formalidade e seriedade dos de 1969, são aparentemente mais jovens, usam roupas descoladas (primeira mudança: os pais de 1969 procuravam parecer mais velhos, os pais de 2009 se preocupam em parecer mais novos), porém, são raivosos, cheios de si, querem ver cumpridos seus direitos de cidadãos. Exigem explicações quanto ao péssimo rendimento escolar do filho, no entanto, dessa vez é a professora que deve responder à pergunta: Que notas são essas? (Segunda mudança: os pais responsabilizam os professores pela educação que não dão a seus filhos). A professora, por sua vez, não tem um pingo de autoridade. Nem sobre a criança tampouco frente aos pais. Se pudesse, sairia correndo dali, se possível pedindo perdão pela incapacidade de ensinar/ domesticar aquela criança... Não sabe o que fazer. (Terceira mudança: os professores lavam suas mãos). A criança, nessa cena, reina. Seu cabelo parece uma coroa reluzente. Ele olha para o alto, jubiloso. Orgulha-se de sua suposta esperteza, de sua habilidade em tirar vantagens das situações.
Nas cenas, dois elementos permanecem iguais: as notas das crianças e as perguntas.
A charge coloca em questão os valores de duas instituições chaves de nossa civilização moderna tardia: a família e a escola, especialmente os pais e os professores e, de maneira mais ampla, os contextos sociais e políticos brasileiros. As crianças são os frutos dessas relações, são as personagens menos conscientes de suas ações, que dialogam com os adultos de seu mundo. Analisando apenas o desenho, procurando não pensar na relação causa e efeito que a colocação cronológica dele sugere, é possível dizer que ele afirma a ocorrência de uma mudança de valores (não necessariamente inversa), e que não leva necessariamente à desigualdade comparativa: naquele tempo era melhor, agora é pior. De fato, faz sua crítica tanto à opressão de 1969 quanto ao descompromisso de 2009, por isso, seu título original .....os valores são outros.....
Assim, a maior carga valorativa do e-mail está em seu título: Um exemplo perfeito da inversão de valores que nos assola. Assolar, no Houaiss, tem os seguintes sinônimos: 1. pôr por terra; devastar, arruinar, destruir; 2. pôr em grande aflição; consternar, agoniar. Essa frase, portanto, poderia ser escrita Um exemplo perfeito da inversão de valores que nos arruína. Ao usar o verbo assolar, o autor leva o leitor à conclusão de que o ensino no tempo passado era melhor, mais sério. Os pais tinham no professor um aliado, alguém preocupado e preparado para disciplinar seu filho. Agora, no entanto, vivemos a ruína, a destruição dos valores, o oba oba, a lei do tudo pode....
Será que aqueles valores morais de 1969 são mesmos melhores?
Será que não existem os valores morais de 2009? Ou será que são piores que os de 1969? Será que são diferentes: de que maneira, em que medida?

4 comentários:

  1. Maria, adorei o blog! Parabéns a todos e que ele continue com esta qualidade. Os sites dos museus e os blogs sugeridos também são dez, especialmente os que tratam de África e relações raciais no Brasil e África. A disponibilização de artigos super importantes, neste campo, certamente contribuirá para os estudos que realizo com meus alunos na FCT - UNESP, em Presidente Prudente. Sobre o seu ótimo texto comentando as charges, achei muito bacana você desfocar os resultados do aproveitamento escolar apenas da ação de apenas dois dos sujeitos envolvidos, no caso professores ou alunos. Sem desmerecer esta importância, ficam ocultos todo um processo histórico político e cultural que produzem permanências nas estruturas de poder e explicam tudo em termos de “crise de valores”, sejam familiares, religiosos, morais etc. A idéia de “crise” é relacionada com a de irrupção de disfunções, distonias, inadequações etc. Pelo contrário, tudo isso é super esperado e coerente com os valores que realmente comandam o mundo social que criamos: individualismo, competitividade, consumismo, poucos lugares privilegiados e, portanto, expectativa de que sejam poucos os que terão sucesso e acesso e tais lugares. Sem falar que existe todo um sistema político e cultural que permeia a organização e o currículo das escolas e que não são devidamente indagados e questionados em termos do modo como operam para discriminar e excluir. São fundamentais as questões que você tão bem destacou: que tempos são esses que vivemos? o que se espera em termos de emancipação humana e de justiça coletiva? a serviço de que e de quem está a escola?

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  2. Fátima, também achei muito pertinente seu comentário, especialmente algumas perguntas provocativas, como: "o que se espera em termos de emancipação humana e de justiça coletiva? a serviço de que e de quem está a escola?". Digo provocativas pois chamam o leitor, especialmente o leitor crítico, para um posicionamento frente a questões tão delicadas e cruciais para a sociedade brasileira atual. como modificar, por meio de mecanismos educativos federais, costumes e tradições, modos de vida e sistemas de pensamento de uma nação que foi friamente forjada e dolorosamente aculturada ao longo desses seus 500 e poucos anos? essa é realmente uma questão que deveria ser pensada por todos aqueles que se envolvem, de alguma maneira, com a educação e com questões de ordem cultural. hoje, ouvindo a rádio uel, acompanhei informações sobre uma discussão política levantada por um vereador (infelizmente não me ative ao nome dele) em relação a implantação do feriado de 20 de novembro - dia da consciência negra - em londrina. algumas pessoas falaram sua opinião sobre o assunto. o vereador, logicamente, defendeu seu ponto de vista, uma professora responsável pelo grupo de estudos africanos e asiáticos da uel falou da importância da data para a luta social no brasil. por fim, falou o presidente da associação comercial de londrina. ele é contra a oficialização do feriado porque o "comércio da cidade iria perder de lucrar não sei quantos mil reais em função desse dia de folga". o que dizer dos valores desse cidadão? quais são suas prioridades enquanto brasileiro? a serviço de que e de quem estará ele? a serviço de que e de quem estaremos nós,envolvidos em questões educacionais, comerciais, jurídicas, sociais, religiosas? será que são nessas brechas, onde o valor econômico sobrepuja o histórico, que se refugia o preconceito racial brasileiro?

    enfim...que bom que você gostou do blog. gostaríamos de convidá-la a participar mais vezes. Valeu. Maria

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  3. A meu ver, a radicalização atual, que leva a criança a sobrepor seu poder (ou autoridade?) ao dos pais, e praticamente abolir a autoridade do professor, se deve em grande parte à criação do nicho de mercado para as crianças. Acredito que esta seja uma análise xiitamente marxista, mas não consigo imaginar de outra forma. Vejo a mesma coisa ocorrer com diversos dos nichos que foram criados a partir, justamente, dos anos 60 pelo mundo (no Brasil, mais pros 70; nos EUA, mais pros 50): nichos mercadológicos sexuais (homossexuais, feministas, machistas, metrossexuais), de idade (crianças, velhos, adolescentes), de cor (a tal da raça 100% negra), e muitos outros. Eu vejo de maneira positiva a emancipação de todos esses grupos; porém vejo de maneira negativa a degradação que isso traz não só de valores morais, mas também de princípios que norteiem o consumo dos produtos voltados a esses nichos, prejudicando a própria saúde mental do consumidor. Voltando à criança: nós mesmos, que não somos tão velhos, éramos, quando crianças, tão bombardeados pela propaganda, que achávamos inconscientemente (pois, como vc afirmou, as crianças são as menos dotadas de consciência moral) que tínhamos um poder ativo de decisão sobre aquilo que queremos e podemos. A meu ver, os valores morais da atualidade são muito mais virtuais e voláteis, o que só tende a incrementar essa ilusão de que podemos decidir, desde crianças, sobre tudo que queremos e podemos. Mas a sociedade, infelizmente, não consegue atingir um equilíbrio (aí já não sei porque, deve ser má vontade da maioria); e sempre que um grupo se emancipa, que sobrepor suas decisões aos outros. Parece que isso cai em algo que considero errado, que é tratar todas as relações sociais como luta de poder; não acredito que a sociedade se fundamente numa luta de poder, mas acho que essa luta é estimulada pelo consumo, na medida em que estimula a nossa capacidade de querer, de poder e (por que não?) de destruir a si mesmo e aos outros. O processo é lento e o bagulho é lôco. Por enquanto, é isso que estou pensando; espero ter colaborado com a discussão!

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  4. O que mandou basicamente de uns anos para cá .

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