quinta-feira, 9 de julho de 2009

Reflexões sobre o pensamento de Marsílio de Pádua: história política ou história cultural?

Minha segunda contribuição no blog, mas ainda com um texto meio antigo (esse é de 2006), que eu escrevi para um trabalho de Teoria da História e que foi ministrada pelo Rogerio Ivano. Esse texto é um dos meu preferidos porque eu tive muito liberdade pra escrever, já que a proposta era escrever um ensaio...assim são só especulações de uma mente inquieta sobre os problemas que rondavam, e ainda rondam, os estudos sobre algumas fontes e períodos da Idade Média. Espero que aproveitem a leitura tanto quanto eu aproveitei ao escreve-lo. \,,/

Para começar esse ensaio acho de bom tom falar um pouco sobre quem foi Marsílio de Pádua, e depois disso, as idéias e questões que eu quero começar a discutir aqui.

Marsílio Mainardini nasceu em Pádua no ano de 1280; sua família era tradicional naquela cidade, com seu pai ocupando um cargo importante na Universidade, o que leva a vários autores afirmarem que Marsílio desde jovem já vivia em um ambiente culto e que isso foi um elemento muito importante na vida do nosso autor. Estudou Direito em Pádua e provavelmente foi la também que estudou Medicina; em alguns meses entre 1312 e 1313, Marsílio foi reitor da universidade de Paris, por isso se conclui que ele já morava há algum tempo nessa cidade. No tempo em que viveu em Paris, Marsílio teve contato com os problemas que colocavam em conflito o rei Felipe IV e o papa Bonifácio VIII; no ano de 1324 Marsílio termina sua obra mais importante, Defensor pacis, que foi dedicado ao Imperador Ludovico (IV) da Baviera, Imperador do Sacro Império Romano Germânico. A intenção de Marsílio ao escrever essa obra era a dar fim às disputas entre Império e Papado, e para tanto ele escreve contra a chama plenitude de poder requerida pelos papas neste momento. Conforme o próprio autor expressa no capitulo XIX da primeira parte: “[...]alguns dentre os mais recentes bispos de Roma se atribuíram depois uma jurisdição coerciva universal sobre o mundo inteiro,(...),chamada plenitude de poder.”(p.200). Marsílio viveu muito tempo na corte do Imperador, auxiliado-o nas questões contra o Papado. Marsílio provavelmente faleceu em 1343.[1]

Não é meu objetivo aqui analisar a obra de Marsílio, nem as relações de poder entre Império e Igreja na Idade Média. O que eu espero é conseguir levantar algumas questões que considero importantes e pouco exploradas pela historiografia, tanto do período quanto das obras publicadas sobre o pensamento do Paduano.

Proponho que o leitor pense comigo durante esse ensaio certas questões, que desde já deixo claro que não serão respondidas aqui, mas em posteriores pesquisas e trabalhos; primeiramente quero tentar achar alguns vestígios de uma cultura política laica, racional na obra de Marsílio de Pádua; pretendo encontrar também no Defensor da Paz elementos de uma identidade cultural européia, e essa é a proposta mais complicada, como mostrarei mais adiante.

Devo primeiramente perguntar ao leitor: o que é que você entende por cultura política? Ou mais precisamente o que você entende por cultura política na Europa do século XII ao XIV?

Admito que para um leitor não iniciado nas leituras sobre esse assunto essas são perguntas complicadas. Pois bem, tentarei mostrar um caminho para o leitor seguir e, dependendo de sua capacidade, traçar uma ou mais respostas para as questões acima.

A política voltou a interessar os historiadores depois de algumas décadas longe dos temas mais desejados para pesquisas e trabalhos históricos. Mas o estudo da política hoje tem influências decisivas da antropologia, e essas influências deram ao historiador um novo ponto de vista sobre o fenômeno do político; as analises não são mais centradas nos grandes nomes da política e sim nas relações de poder que se estabelece entre os diversos atores e setores da sociedade.

A história, dita, política do ocidente medieval se aproveitou imensamente dessa renovação historiográfica. Com analises do campo simbólico do poder, os medievalistas perceberam com maior clareza os meandros das relações de poder na sociedade medieval. Analisando o simbólico, com influências da antropologia, a historiografia sobre o medievo entrou nas discussões sobre cultura.

Grandes estudos surgiram sobre a cultura, ou melhor, as culturas no ocidente medieval; foram centradas principalmente na cultura popular e nas relações que os níveis de cultura da sociedade medieval mantinham entre si.

No nosso caso, caro leitor, não precisamos discutir em que nível cultural o autor pertence (o que se poderia pensar é se nosso autor, Marsílio, só pertencia a um nível cultural, a saber, da cultura erudita; deixo essa reflexão em aberto...), pois é evidente que Marsílio pertence a elite cultural de sua sociedade.

No século XIV, momento em que Marsílio escreve, os saberes já não são mais monopolizados pela Igreja; desde o séc. XII a Europa tem universidades que são financiadas em grande parte pelo poder laico. A partir do século XII as obras de Aristóteles são traduzidas para o latim, e se tornam a pedra mestra do pensamento medieval, substituindo o pensamento platônico dominante ate então.

É nesse contexto que se insere a obra O Defensor da Paz. Como já foi dito anteriormente a obra foi escrita em defesa da paz, da tranqüilidade e do poder do Imperador. Na primeira parte da obra, Marsílio utiliza a Política de Aristóteles em quase todas as suas analises e proposições; essa utilização, como o autor diz em algumas partes (“Servindo-me de métodos corretos elaborados pela razão e apoiados em proposições bem estabelecidas e evidentes por si mesmas[...]”), é para provar e sustentar suas idéias com o respaldo da razão humana, sem precisar da teologia (na segunda parte o método do autor inverte e ele usa, sobretudo a teologia e as “verdades” da bíblia e dos santos...).

Voltando à pergunta que fiz no inicio deste ensaio: é possível ver no Defensor da Paz elementos de uma cultura política? e mais, uma cultura política laica, racional, separada dos dogmas da Igreja? Acredito que sim. Por tratar fundamentalmente da PAZ, Marsílio se insere num tema de longa duração no pensamento ocidental, que chega até os teóricos políticos da “modernidade” como Maquiavel, Hobbes entre outros. “Os laços entre a natureza e Deus eram matéria de fé e, por isso, não podiam ser demonstrados. A ciência política devia limitar-se, portanto, a cuidar dos objetos acessíveis à razão e à experiência”,[2]ou seja, o pensamento “político” não podia mais se relacionar com os assuntos da fé, da igreja. Sendo assim, o pensamento de Marsílio se insere no processo de formação da cultura política laica.

Passo agora ao segundo ponto de discussão, a saber, a possibilidade de encontrar no Defensor da Paz elementos de uma identidade cultural européia.

O leitor pode se perguntar: identidade cultural na Idade Média? Como, se é um período marcado pela descentralização política, econômica e até mesmo cultural? Como ter identidade, unidade em algo fragmentado? O momento em que Marsílio escreve é a gênese do processo de formação dos Estados-Nacionais, e segundo Denys Cuche é com a consolidação dos Estados-Nacionais que a identidade passa a ser quase que imposta ao individuo, para que a unidade do Estado não seja dissipada por mais de uma identidade cultural e nacional[3]·.

Acredito que a Idade Média, principalmente depois do século XI, conheceu uma identidade cultural através do cristianismo (cristandade...); isso se considerarmos somente o fato de praticamente toda a Europa ser cristã, acreditando em Deus e obedecendo (as vezes...) a Igreja Católica Romana, porque se levarmos em conta os particularismos culturais de cada região, as aculturações e sincretismos internos, não poderei falar de identidade européia antes da modernidade. Como fica então o problema em questão? Bom, uma saída é dizer que a identidade européia no medievo se constrói nas relações, nem sempre amigáveis, com “os outros”, que são os mulçumanos, judeus, hereges e etc; porque segundo Cuche, “[...]a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural”(CUCHE, 1999, p.177), ou no caso do ocidente medieval, uma diferença essencialmente religiosa, mas que não deixa de ter seu caráter cultural. Como eu adverti no começo do ensaio, o problema de identidade cultural na Europa “medieval” é complicado. Mas esse não é o lugar para se achar as respostas; é o lugar para mostrar as possibilidades de reflexão, por isso, um problema complicado não é motivo de desespero e desistência, mas sim motivo de entusiasmo e esforço para achar respostas convincentes, mas nunca respostas absolutas.

A Idade Média, caro leitor, foi um período de uma interdisciplinaridade impar na história do mundo ocidental. Não podemos perceber a filosofia separada da teologia, como não podemos perceber a teologia separada da política, ou essa longe do direito e assim por diante. Por isso um documento como O Defensor da Paz é a soma de todos esses saberes, e analisa-lo só a luz dos métodos, por exemplo, da história política ou da história do direito é se arriscar a não compreende-lo por inteiro. Sendo então um monumento da cultura, O Defensor da Paz pode ser analisado com métodos da história cultural. Esse é um caminho a percorrer e não digo que é um caminho fácil, mas quem disse que fazer História é fácil?

Bibliografia

Fonte:

PADUA, Marsílio de. O Defensor da Paz. Trad. J. A. C. R. de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997.

Outros:

CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.

HUNT, Lynn. Apresentação: historia, cultura e texto. In: A nova historia cultural. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas, 2002.



[1] Para as informações biográficas sobre Marsílio de Pádua utilizei-me da primeira parte da Introdução, escrita por Jose Antonio de Souza, do Defensor da Paz, obra que está na bibliografia no final deste ensaio.

[2] KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas, 2002. P.497.

[3] CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, São Paulo: Edusc, 1999. P. 188.

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