O tema deste livro foi adaptado ao teatro em 2007.
LEME, Edson Holtz. Noites ilícitas: histórias e memórias da prostituição. Londrina: Eduel, 2005.
Por uma historiografia que privilegia os setores marginalizados em detrimento de representantes dos grupos hegemônicos da sociedade, Edson Holtz Leme trabalha a questão da prostituição na cidade de Londrina, no norte do Paraná, no período de 1940 a 1966. Se ocupa de personagens-outros como jogadores, prostitutas, cáftens, vagabundos pois “considerados a ‘nata’ da marginalidade, deixaram de ser iluminados pelos holofotes oficiais e foram estrategicamente silenciados e descartados do passado oficial” (p.05).
Seguindo uma linha teórico-historiográfica de tradição francesa, do movimento chamado “Nova História”, que possibilitou a abertura de novas perspectivas na forma de abordar o passado e aliado a emergência dos estudos temáticos anteriormente considerados marginais, ou seja, fora dos domínios oficiais da história, como gênero, sexualidade, disciplina, prostituição, Leme analisa as representações e imagens construídas sobre o mundo da prostituição: as tentativas de controle e segregação impostos a seus personagens e territórios na cidade de Londrina, durante o período de ouro da economia cafeeira. Também tem como objetivo contrapor aos registros dos saberes e discursos vinculados ao poder local – judiciário, religioso, legislativo e médico -, as lembranças e reminescências dos personagens que vivenciaram de uma forma positiva o universo da prostituição na cidade.
Para Leme, a história da prostituição em Londrina acompanhou o processo de desenvolvimento da cidade, desde a sua origem, passando pelos tempos de “capital mundial do café”. Atribui o crescimento acelerado e desordenado da cidade um movimento contínuo de “desrritorialização” e “reterritorialização” das zonas de prostituição.
No primeiro capítulo, contextualizando historicamente a cidade de Londrina e seus guetos de prostituição, o autor retorna até o tempo da colonização da cidade, quando foram comercializados os primeiros lotes de terra pela Companhia de Terras Norte do Paraná. Comenta sobre o projeto urbanístico da cidade e a importância da propaganda para colonização de seu território.
Inicialmente projetada para comportar uma população em torno de 20 a 30 mil habitantes, a Companhia de Terras Norte do Paraná previa uma distribuição racional da cidade, dentre os diversos núcleos urbanos, fundados com a progressiva ocupação e comercialização de suas terras. Partindo de um ideal urbanístico de influência inglesa do século XIX, a cidade foi organizada nos moldes da “cidade-jardim”, planejada para receber uma população limitada, canalizando os afluxos da população rural e corrigindo o problema da densidade, típicas das cidades industriais inglesas.
Alguns anos foram suficientes para mostrar que a ordem e a disciplina urbana do projeto inicial tornar-se-iam reféns do crescimento acelerado e desordenado de toda a região.
Na década de 1940, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, a economia cafeeira apresentou uma rápida recuperação no mercado internacional. Tal movimento foi responsável pelo crescimento da cidade, que representou um custo social muito grande para a cidade.
A expansão deu-se de forma desordenada, áreas anteriormente concebidas para se transformarem em reservas verdes logo se tornaram bairros periféricos. A chegada diária e crescente de imigrantes para a cidade não veio acompanhada da abertura proporcional do número de postos de trabalho, tanto no campo quanto na cidade. O aumento da miséria e da marginalidade acabou sendo a conseqüência. A tranqüilidade dos primeiros tempos passou a dar lugar à insegurança.
Em meio ao caos urbano que se formava no espaço territorial da cidade, surgiram medidas disciplinadoras que visavam regular a vida cotidiana de Londrina. Foi criada a Lei 219 do Código de Posturas que objetivou o estabelecimento de uma normalização de comportamentos sociais, visando garantir a segurança e a ordem pública. Regulamentados pelo Poder Público, a Polícia de Ordem Pública e a Polícia Sanitária tiveram como alvos principais as práticas, os territórios marginais, principalmente aqueles ligados ao mundo da prostituição. Não somente leis, mas também campanhas moralizantes, levadas à cabo pelas elites e famílias da cidade.
Localizados nas margens da malha urbana da cidade, os guetos de prostituição representavam espaços de sociabilidade diferenciados, ocupados por marginais como jogadores, prostitutas, vagabundos, cáftens, foram gestados pelo próprio desenvolvimento da cidade.
Conforme a cidade cresceu, o que se localizava na margem se aproximou, as zonas de meretrício localizadas na Rua Rio Grande do Norte ficaram cada vez mais próximas de áreas residenciais ocupadas por famílias da classe média da cidade. Antes distante do quadrilátero da cidade, a “rua do pecado” não incomodava os moradores, pois distante da maior concentração populacional da cidade, não representava perigo às famílias. Apesar da intolerância informal para com sua existência, o crescimento das casas de prostituição na Rua Rio Grande do Sul preocupou as elites e as camadas médias da cidade, tendo a imprensa um papel fundamental como porta voz dos guardiões da moral e dos bons costumes. Temiam que esta proximidade poderia exercer uma influência negativa aos jovens e ao seio familiar.
Leme, estuda o processo de “desrritorialização” e “reterritorialização” da zona prostituição quando transferiram por ordem judicial as casas e pensões da Rua Rio Grande do Sul para a Vila Matos, local que cresceu sob o estigma da marginalidade, distante do centro da cidade e próxima do olhar vigilante da polícia. A existência da Vila Matos, enquanto espaço de confinamento e controle, justificava, segundo a imprensa, uma ação firme da polícia visando a higienização social da cidade.
As diversas tentativas de normatizar e disciplinar a prostituição, tiveram como uma de suas principais justificativas, a preservação da moral e dos bons costumes. As tensões daí decorrentes percorreram toda a história da cidade.
O autor percebe ainda que, apesar do mal-estar provocado pela existência de um território marginal na cidade, dedicado às práticas ilícitas, como a prostituição, o pequeno número de casas suspeitas contribuiu, ao menos, nos primeiros anos da cidade, para o estabelecimento e a manutenção de uma certa tolerância. Muitos daqueles que em seus discursos, durante o dia, pediam o fim daquele antro, à noite buscavam, junto de amigos, divertir-se de forma licenciosa nas diversas boates existentes.
Nas décadas seguintes, o incômodo causado pelos “marginais” permanecia. Na década de 1950 já não bastava mais confinar as prostitutas em regiões distantes da região central mas também proibir sua circulação e determinar-lhes horários. A perseguição continuou através de repressão policial, por meio de “batidas” violentas e através do discurso moralizante e preconceituoso. A prostituição, pelo seu caráter de ameaça moral que representava às famílias, recebeu um tratamento especial e particular. Sempre presente nas páginas policiais, as prostitutas foram, por diversas vezes, responsabilizadas pelo aumento da criminalidade na cidade.
Segregar espacialmente, nas chamadas “casas de tolerância”, em territórios distantes, na periferia da cidade, mas acessíveis ao controle médico-sanitário, tornou-se também uma prerrogativa da intervenção policial que, dessa forma, consolidou práticas regulamentaristas no gerenciamento do mundo da prostituição.
Para Leme, o fenômeno da prostituição na cidade de Londrina não se consolidou enquanto um território boêmio de fama nacional, mas também como espaço de conflitos físicos e morais.
No segundo capítulo, Holtz Leme procura analisar os vários discursos que buscaram normalizar e disciplinar o comportamento dos corpos na cidade, que tentam justificar e consolidar determinadas imagens e estereótipos e preconceitos sobre a sexualidade ilícita, utilizando-se de fontes como inquéritos policiais, processos crime, atas de reuniões da Câmara de Vereadores, documentos e publicações eclesiásticas, notícias da imprensa e um depoimento.
A análise dos discursos normalizadores sobre o mundo ilícito possibilitou esquadrinhar os mecanismos pelos quais diversas instituições de poder local buscaram justificar o controle e a segregação espacial das “mulheres públicas”.
No terceiro capítulo, o autor abre espaço para a memória daqueles que vivenciaram o cotidiano do meretrício: clientes, prostitutas, policiais que apresentam uma “outra visão” do mundo da prostituição, diferentes da visão negativa da historiografia oficial, Leme procura regatar a positividade das lembranças, imagens e representações da zona como um espaço de sociabilidades alternativas.
Em suma, a obra de Edson Holtz Leme é uma contribuição para a historiografia dita “marginal” que, ao se embrenhar nos meandros da prostituição, lança uma nova perspectiva, uma positividade às práticas consideradas ilícitas e condenáveis por uma determinada noção moral.
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