
Deixe a dúvida no ar... espero não ter que voltar para o mundo dos vivos para tirar essa história a limpo... assim, estaria subvertendo a ordem da morte!! Quer saber, viva a subversão!
Fac-símile (será?) de caderneta de Luís Carlos Prestes, no arquivo do Delegacia de Ordem Política e Social:
http://www.arquivoestado.sp.gov.br/docdesc.php?id=4
O documento que ora colocamos “em destaque” pertence a um importante fundo documental do Arquivo Público do Estado: DEOPS – Delegacia de Ordem Política e Social. Trata-se de reprodução eletrostática, produzida pela própria polícia política, do primeiro volume das dezenove cadernetas escritas por Luiz Carlos Prestes e apreendidas em sua própria residência, no ano de 1964. Juntas, somam 3.426 páginas. Essas cadernetas foram consideradas “a prova mais importante” para o indiciamento de 74 pessoas denominadas “subversivas” pelo Supremo Tribunal Militar. Nas cadernetas constam nomes de políticos brasileiros, comunistas e relatos das atividades desenvolvidas pelo Partido Comunista do Brasil - PCB. A investigação dessa documentação resultou em inquérito de dez volumes, sendo que as cópias das cadernetas foram anexadas ao processo. As páginas 122 a 125 da caderneta não foram reproduzidas por estarem em branco.
Observação: No acervo DEOPS de São Paulo não foi localizada a documentação original. Para mais informações sobre o tema, ver os documentos: prontuário 489 e dossiê 30-Z-9, pastas 16 a 33.
PS: E por falar em saudade:
http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/2042/artigo119739-1.htm
A volta de cabo anselmo como cidadão
O marinheiro que desafiou os militares, se tornou um dos mais polêmicos agentes da repressão e vive na clandestinidade há 44 anos ganha ação na Justiça que obriga a União a lhe devolver a identidade e os direitos civis
Texto interessante sobre como abordar os temas religião/religiosidade/poder da religião/tradição religiosa na sala de aula:
http://www.scielo.br/pdf/rbedu/n27/n27a12.pdf
O capítulo "Religião" (pág. 187) é ótimo!!!
LEME, Edson Holtz. Noites ilícitas: histórias e memórias da prostituição. Londrina: Eduel, 2005.
Por uma historiografia que privilegia os setores marginalizados em detrimento de representantes dos grupos hegemônicos da sociedade, Edson Holtz Leme trabalha a questão da prostituição na cidade de Londrina, no norte do Paraná, no período de 1940 a 1966. Se ocupa de personagens-outros como jogadores, prostitutas, cáftens, vagabundos pois “considerados a ‘nata’ da marginalidade, deixaram de ser iluminados pelos holofotes oficiais e foram estrategicamente silenciados e descartados do passado oficial” (p.05).
Seguindo uma linha teórico-historiográfica de tradição francesa, do movimento chamado “Nova História”, que possibilitou a abertura de novas perspectivas na forma de abordar o passado e aliado a emergência dos estudos temáticos anteriormente considerados marginais, ou seja, fora dos domínios oficiais da história, como gênero, sexualidade, disciplina, prostituição, Leme analisa as representações e imagens construídas sobre o mundo da prostituição: as tentativas de controle e segregação impostos a seus personagens e territórios na cidade de Londrina, durante o período de ouro da economia cafeeira. Também tem como objetivo contrapor aos registros dos saberes e discursos vinculados ao poder local – judiciário, religioso, legislativo e médico -, as lembranças e reminescências dos personagens que vivenciaram de uma forma positiva o universo da prostituição na cidade.
Para Leme, a história da prostituição em Londrina acompanhou o processo de desenvolvimento da cidade, desde a sua origem, passando pelos tempos de “capital mundial do café”. Atribui o crescimento acelerado e desordenado da cidade um movimento contínuo de “desrritorialização” e “reterritorialização” das zonas de prostituição.
No primeiro capítulo, contextualizando historicamente a cidade de Londrina e seus guetos de prostituição, o autor retorna até o tempo da colonização da cidade, quando foram comercializados os primeiros lotes de terra pela Companhia de Terras Norte do Paraná. Comenta sobre o projeto urbanístico da cidade e a importância da propaganda para colonização de seu território.
Inicialmente projetada para comportar uma população em torno de 20 a 30 mil habitantes, a Companhia de Terras Norte do Paraná previa uma distribuição racional da cidade, dentre os diversos núcleos urbanos, fundados com a progressiva ocupação e comercialização de suas terras. Partindo de um ideal urbanístico de influência inglesa do século XIX, a cidade foi organizada nos moldes da “cidade-jardim”, planejada para receber uma população limitada, canalizando os afluxos da população rural e corrigindo o problema da densidade, típicas das cidades industriais inglesas.
Alguns anos foram suficientes para mostrar que a ordem e a disciplina urbana do projeto inicial tornar-se-iam reféns do crescimento acelerado e desordenado de toda a região.
Na década de 1940, logo após o término da Segunda Guerra Mundial, a economia cafeeira apresentou uma rápida recuperação no mercado internacional. Tal movimento foi responsável pelo crescimento da cidade, que representou um custo social muito grande para a cidade.
A expansão deu-se de forma desordenada, áreas anteriormente concebidas para se transformarem em reservas verdes logo se tornaram bairros periféricos. A chegada diária e crescente de imigrantes para a cidade não veio acompanhada da abertura proporcional do número de postos de trabalho, tanto no campo quanto na cidade. O aumento da miséria e da marginalidade acabou sendo a conseqüência. A tranqüilidade dos primeiros tempos passou a dar lugar à insegurança.
Em meio ao caos urbano que se formava no espaço territorial da cidade, surgiram medidas disciplinadoras que visavam regular a vida cotidiana de Londrina. Foi criada a Lei 219 do Código de Posturas que objetivou o estabelecimento de uma normalização de comportamentos sociais, visando garantir a segurança e a ordem pública. Regulamentados pelo Poder Público, a Polícia de Ordem Pública e a Polícia Sanitária tiveram como alvos principais as práticas, os territórios marginais, principalmente aqueles ligados ao mundo da prostituição. Não somente leis, mas também campanhas moralizantes, levadas à cabo pelas elites e famílias da cidade.
Localizados nas margens da malha urbana da cidade, os guetos de prostituição representavam espaços de sociabilidade diferenciados, ocupados por marginais como jogadores, prostitutas, vagabundos, cáftens, foram gestados pelo próprio desenvolvimento da cidade.
Conforme a cidade cresceu, o que se localizava na margem se aproximou, as zonas de meretrício localizadas na Rua Rio Grande do Norte ficaram cada vez mais próximas de áreas residenciais ocupadas por famílias da classe média da cidade. Antes distante do quadrilátero da cidade, a “rua do pecado” não incomodava os moradores, pois distante da maior concentração populacional da cidade, não representava perigo às famílias. Apesar da intolerância informal para com sua existência, o crescimento das casas de prostituição na Rua Rio Grande do Sul preocupou as elites e as camadas médias da cidade, tendo a imprensa um papel fundamental como porta voz dos guardiões da moral e dos bons costumes. Temiam que esta proximidade poderia exercer uma influência negativa aos jovens e ao seio familiar.
Leme, estuda o processo de “desrritorialização” e “reterritorialização” da zona prostituição quando transferiram por ordem judicial as casas e pensões da Rua Rio Grande do Sul para a Vila Matos, local que cresceu sob o estigma da marginalidade, distante do centro da cidade e próxima do olhar vigilante da polícia. A existência da Vila Matos, enquanto espaço de confinamento e controle, justificava, segundo a imprensa, uma ação firme da polícia visando a higienização social da cidade.
As diversas tentativas de normatizar e disciplinar a prostituição, tiveram como uma de suas principais justificativas, a preservação da moral e dos bons costumes. As tensões daí decorrentes percorreram toda a história da cidade.
O autor percebe ainda que, apesar do mal-estar provocado pela existência de um território marginal na cidade, dedicado às práticas ilícitas, como a prostituição, o pequeno número de casas suspeitas contribuiu, ao menos, nos primeiros anos da cidade, para o estabelecimento e a manutenção de uma certa tolerância. Muitos daqueles que em seus discursos, durante o dia, pediam o fim daquele antro, à noite buscavam, junto de amigos, divertir-se de forma licenciosa nas diversas boates existentes.
Nas décadas seguintes, o incômodo causado pelos “marginais” permanecia. Na década de 1950 já não bastava mais confinar as prostitutas em regiões distantes da região central mas também proibir sua circulação e determinar-lhes horários. A perseguição continuou através de repressão policial, por meio de “batidas” violentas e através do discurso moralizante e preconceituoso. A prostituição, pelo seu caráter de ameaça moral que representava às famílias, recebeu um tratamento especial e particular. Sempre presente nas páginas policiais, as prostitutas foram, por diversas vezes, responsabilizadas pelo aumento da criminalidade na cidade.
Segregar espacialmente, nas chamadas “casas de tolerância”, em territórios distantes, na periferia da cidade, mas acessíveis ao controle médico-sanitário, tornou-se também uma prerrogativa da intervenção policial que, dessa forma, consolidou práticas regulamentaristas no gerenciamento do mundo da prostituição.
Para Leme, o fenômeno da prostituição na cidade de Londrina não se consolidou enquanto um território boêmio de fama nacional, mas também como espaço de conflitos físicos e morais.
No segundo capítulo, Holtz Leme procura analisar os vários discursos que buscaram normalizar e disciplinar o comportamento dos corpos na cidade, que tentam justificar e consolidar determinadas imagens e estereótipos e preconceitos sobre a sexualidade ilícita, utilizando-se de fontes como inquéritos policiais, processos crime, atas de reuniões da Câmara de Vereadores, documentos e publicações eclesiásticas, notícias da imprensa e um depoimento.
A análise dos discursos normalizadores sobre o mundo ilícito possibilitou esquadrinhar os mecanismos pelos quais diversas instituições de poder local buscaram justificar o controle e a segregação espacial das “mulheres públicas”.
No terceiro capítulo, o autor abre espaço para a memória daqueles que vivenciaram o cotidiano do meretrício: clientes, prostitutas, policiais que apresentam uma “outra visão” do mundo da prostituição, diferentes da visão negativa da historiografia oficial, Leme procura regatar a positividade das lembranças, imagens e representações da zona como um espaço de sociabilidades alternativas.
Em suma, a obra de Edson Holtz Leme é uma contribuição para a historiografia dita “marginal” que, ao se embrenhar nos meandros da prostituição, lança uma nova perspectiva, uma positividade às práticas consideradas ilícitas e condenáveis por uma determinada noção moral.
Minha segunda contribuição no blog, mas ainda com um texto meio antigo (esse é de 2006), que eu escrevi para um trabalho de Teoria da História e que foi ministrada pelo Rogerio Ivano. Esse texto é um dos meu preferidos porque eu tive muito liberdade pra escrever, já que a proposta era escrever um ensaio...assim são só especulações de uma mente inquieta sobre os problemas que rondavam, e ainda rondam, os estudos sobre algumas fontes e períodos da Idade Média. Espero que aproveitem a leitura tanto quanto eu aproveitei ao escreve-lo. \,,/
Para começar esse ensaio acho de bom tom falar um pouco sobre quem foi Marsílio de Pádua, e depois disso, as idéias e questões que eu quero começar a discutir aqui.
Marsílio Mainardini nasceu em Pádua no ano de 1280; sua família era tradicional naquela cidade, com seu pai ocupando um cargo importante na Universidade, o que leva a vários autores afirmarem que Marsílio desde jovem já vivia em um ambiente culto e que isso foi um elemento muito importante na vida do nosso autor. Estudou Direito em Pádua e provavelmente foi la também que estudou Medicina; em alguns meses entre 1312 e 1313, Marsílio foi reitor da universidade de Paris, por isso se conclui que ele já morava há algum tempo nessa cidade. No tempo em que viveu em Paris, Marsílio teve contato com os problemas que colocavam em conflito o rei Felipe IV e o papa Bonifácio VIII; no ano de 1324 Marsílio termina sua obra mais importante, Defensor pacis, que foi dedicado ao Imperador Ludovico (IV) da Baviera, Imperador do Sacro Império Romano Germânico. A intenção de Marsílio ao escrever essa obra era a dar fim às disputas entre Império e Papado, e para tanto ele escreve contra a chama plenitude de poder requerida pelos papas neste momento. Conforme o próprio autor expressa no capitulo XIX da primeira parte: “[...]alguns dentre os mais recentes bispos de Roma se atribuíram depois uma jurisdição coerciva universal sobre o mundo inteiro,(...),chamada plenitude de poder.”(p.200). Marsílio viveu muito tempo na corte do Imperador, auxiliado-o nas questões contra o Papado. Marsílio provavelmente faleceu em 1343.[1]
Não é meu objetivo aqui analisar a obra de Marsílio, nem as relações de poder entre Império e Igreja na Idade Média. O que eu espero é conseguir levantar algumas questões que considero importantes e pouco exploradas pela historiografia, tanto do período quanto das obras publicadas sobre o pensamento do Paduano.
Proponho que o leitor pense comigo durante esse ensaio certas questões, que desde já deixo claro que não serão respondidas aqui, mas em posteriores pesquisas e trabalhos; primeiramente quero tentar achar alguns vestígios de uma cultura política laica, racional na obra de Marsílio de Pádua; pretendo encontrar também no Defensor da Paz elementos de uma identidade cultural européia, e essa é a proposta mais complicada, como mostrarei mais adiante.
Devo primeiramente perguntar ao leitor: o que é que você entende por cultura política? Ou mais precisamente o que você entende por cultura política na Europa do século XII ao XIV?
Admito que para um leitor não iniciado nas leituras sobre esse assunto essas são perguntas complicadas. Pois bem, tentarei mostrar um caminho para o leitor seguir e, dependendo de sua capacidade, traçar uma ou mais respostas para as questões acima.
A política voltou a interessar os historiadores depois de algumas décadas longe dos temas mais desejados para pesquisas e trabalhos históricos. Mas o estudo da política hoje tem influências decisivas da antropologia, e essas influências deram ao historiador um novo ponto de vista sobre o fenômeno do político; as analises não são mais centradas nos grandes nomes da política e sim nas relações de poder que se estabelece entre os diversos atores e setores da sociedade.
A história, dita, política do ocidente medieval se aproveitou imensamente dessa renovação historiográfica. Com analises do campo simbólico do poder, os medievalistas perceberam com maior clareza os meandros das relações de poder na sociedade medieval. Analisando o simbólico, com influências da antropologia, a historiografia sobre o medievo entrou nas discussões sobre cultura.
Grandes estudos surgiram sobre a cultura, ou melhor, as culturas no ocidente medieval; foram centradas principalmente na cultura popular e nas relações que os níveis de cultura da sociedade medieval mantinham entre si.
No nosso caso, caro leitor, não precisamos discutir em que nível cultural o autor pertence (o que se poderia pensar é se nosso autor, Marsílio, só pertencia a um nível cultural, a saber, da cultura erudita; deixo essa reflexão em aberto...), pois é evidente que Marsílio pertence a elite cultural de sua sociedade.
No século XIV, momento em que Marsílio escreve, os saberes já não são mais monopolizados pela Igreja; desde o séc. XII a Europa tem universidades que são financiadas em grande parte pelo poder laico. A partir do século XII as obras de Aristóteles são traduzidas para o latim, e se tornam a pedra mestra do pensamento medieval, substituindo o pensamento platônico dominante ate então.
É nesse contexto que se insere a obra O Defensor da Paz. Como já foi dito anteriormente a obra foi escrita em defesa da paz, da tranqüilidade e do poder do Imperador. Na primeira parte da obra, Marsílio utiliza a Política de Aristóteles em quase todas as suas analises e proposições; essa utilização, como o autor diz em algumas partes (“Servindo-me de métodos corretos elaborados pela razão e apoiados em proposições bem estabelecidas e evidentes por si mesmas[...]”), é para provar e sustentar suas idéias com o respaldo da razão humana, sem precisar da teologia (na segunda parte o método do autor inverte e ele usa, sobretudo a teologia e as “verdades” da bíblia e dos santos...).
Voltando à pergunta que fiz no inicio deste ensaio: é possível ver no Defensor da Paz elementos de uma cultura política? e mais, uma cultura política laica, racional, separada dos dogmas da Igreja? Acredito que sim. Por tratar fundamentalmente da PAZ, Marsílio se insere num tema de longa duração no pensamento ocidental, que chega até os teóricos políticos da “modernidade” como Maquiavel, Hobbes entre outros. “Os laços entre a natureza e Deus eram matéria de fé e, por isso, não podiam ser demonstrados. A ciência política devia limitar-se, portanto, a cuidar dos objetos acessíveis à razão e à experiência”,[2]ou seja, o pensamento “político” não podia mais se relacionar com os assuntos da fé, da igreja. Sendo assim, o pensamento de Marsílio se insere no processo de formação da cultura política laica.
Passo agora ao segundo ponto de discussão, a saber, a possibilidade de encontrar no Defensor da Paz elementos de uma identidade cultural européia.
O leitor pode se perguntar: identidade cultural na Idade Média? Como, se é um período marcado pela descentralização política, econômica e até mesmo cultural? Como ter identidade, unidade em algo fragmentado? O momento em que Marsílio escreve é a gênese do processo de formação dos Estados-Nacionais, e segundo Denys Cuche é com a consolidação dos Estados-Nacionais que a identidade passa a ser quase que imposta ao individuo, para que a unidade do Estado não seja dissipada por mais de uma identidade cultural e nacional[3]·.
Acredito que a Idade Média, principalmente depois do século XI, conheceu uma identidade cultural através do cristianismo (cristandade...); isso se considerarmos somente o fato de praticamente toda a Europa ser cristã, acreditando em Deus e obedecendo (as vezes...) a Igreja Católica Romana, porque se levarmos em conta os particularismos culturais de cada região, as aculturações e sincretismos internos, não poderei falar de identidade européia antes da modernidade. Como fica então o problema em questão? Bom, uma saída é dizer que a identidade européia no medievo se constrói nas relações, nem sempre amigáveis, com “os outros”, que são os mulçumanos, judeus, hereges e etc; porque segundo Cuche, “[...]a identidade cultural aparece como uma modalidade de categorização da distinção nós/eles, baseada na diferença cultural”(CUCHE, 1999, p.177), ou no caso do ocidente medieval, uma diferença essencialmente religiosa, mas que não deixa de ter seu caráter cultural. Como eu adverti no começo do ensaio, o problema de identidade cultural na Europa “medieval” é complicado. Mas esse não é o lugar para se achar as respostas; é o lugar para mostrar as possibilidades de reflexão, por isso, um problema complicado não é motivo de desespero e desistência, mas sim motivo de entusiasmo e esforço para achar respostas convincentes, mas nunca respostas absolutas.
A Idade Média, caro leitor, foi um período de uma interdisciplinaridade impar na história do mundo ocidental. Não podemos perceber a filosofia separada da teologia, como não podemos perceber a teologia separada da política, ou essa longe do direito e assim por diante. Por isso um documento como O Defensor da Paz é a soma de todos esses saberes, e analisa-lo só a luz dos métodos, por exemplo, da história política ou da história do direito é se arriscar a não compreende-lo por inteiro. Sendo então um monumento da cultura, O Defensor da Paz pode ser analisado com métodos da história cultural. Esse é um caminho a percorrer e não digo que é um caminho fácil, mas quem disse que fazer História é fácil?
PADUA, Marsílio de. O Defensor da Paz. Trad. J. A. C. R. de Souza. Petrópolis: Vozes, 1997.
CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru: Edusc, 1999.
[1] Para as informações biográficas sobre Marsílio de Pádua utilizei-me da primeira parte da Introdução, escrita por Jose Antonio de Souza, do Defensor da Paz, obra que está na bibliografia no final deste ensaio.
[2] KRITSCH, Raquel. Soberania: a construção de um conceito. São Paulo: Humanitas, 2002. P.497.
[3] CUCHE, Denys. A noção de cultura nas ciências sociais. Bauru, São Paulo: Edusc, 1999. P. 188.
Meu primeiro post aqui...um texto que escrevi no ultimo ano de facudade e foi publicado no Boletim do Laborátorio de Ensino de História da UEL. Espero críticas construtivas de quem se interessar! \,,/
O objetivo deste texto não é analisar o documento medieval denominado “Donatio Constantini”, pois uma analise desse documento extrapolaria muito os limites desse texto. Por isso, a finalidade dele é mostrar um caminho para o professor, do ensino fundamental e médio, trabalhar com História Medieval, em particular com o tema das relações de poder na Idade Média (principalmente no período da Alta Idade Média) e discutir como pode ser abordada a questão da “Doação de Constantino” sob vários aspectos em uma aula de História Medieval.
O período que denominamos Alta Idade Média se encontra entre os séculos V e XII.[1] Nos primeiros séculos desse período a Europa estava devastada pelas migrações/invasões dos povos “bárbaros” e a “queda” do Império Romano do Ocidente. O poder unificado do Império Romano foi substituído pelos vários reinos “bárbaros”, que até a reunificação imperial de Carlos Magno (Império Carolíngio) no século VIII, lutaram entre si para ver com quem ficava a maior parte dos espólios do Império Romano do Ocidente. A parte Oriental do Império Romano ainda emanava respeito e poder ao Ocidente fragmentado. Nesses primeiros tempos da Idade Média, até a Igreja (católica romana do ocidente) lutava para se unificar e se manter como a única instituição sobrevivente da ruína do Império Romano Ocidental.
As relações entre o poder espiritual, representado pela Igreja, e o poder temporal, representado pelo Imperador e os reis, sempre foram complicadas. A dinastia Carolíngia conseguiu acender ao poder graças, entre outros motivos, a uma união com a Igreja. Pepino, o Breve, doou as terras que ele tinha conquistado dos lombardos para a Igreja, começando assim o Estado Pontifício. Isso ocorreu no século VIII. Nesse momento é que entra em cena o tão famoso documento chamado de “Doação de Constantino”.
Esse documento é muito representativo e importante para a compreensão das relações de poder entre Igreja e Império. Primeiramente deve se dizer que a Doação de Constantino não é um documento legítimo, ou seja, foi produzido muito tempo depois dos fatos relatados nele. Não se sabe ao certo quem produziu esse documento, mas é evidente que foi com autorização papal. Sendo que grande parte dos territórios da Igreja foram doados pelo representante do poder temporal, ou seja, o rei dos francos na época, Pepino, a Igreja ficava assim numa posição de subordinação em relação ao poder temporal. O medievalista brasileiro Hilário Franco Junior explica: “Contra isso é que se forjou o documento conhecido por Doação de Constantino. Por este texto apócrifo, o imperador romano Constantino teria supostamente transferido para o papado, no século IV, o poder imperial sobre todo o Ocidente”.[2] Com esse documento supostamente legal, a Igreja invertia a questão da subordinação, anteriormente mencionada. Agora, a Igreja e o papa, teriam desde de o imperador Constantino o poder sobre o Ocidente; então, a Igreja não devia nada ao rei franco e sim o rei franco só governava por autorização do poder espiritual.
A Doação foi produzida pela Igreja no século VIII, querendo se passar por um documento do século IV. Nas disputas entre o poder espiritual e o poder temporal, depois do século VIII, esse documento foi amplamente usado pelos defensores da Igreja. Eles usavam a Doação de Constantino para afirmar a universalidade da Igreja e do papado romano; também servia para justificar a tentativa de domínio sobre toda a cristandade por parte da Igreja; os defensores do poder espiritual também utilizavam a Doação como legitimação da teoria de que o papa tinha a plenitude de poder sobre todo o Império e, conseqüentemente, sobre todo o Ocidente. A Doação de Constantino também foi utilizada para as disputas do papado com o Império Bizantino, pois se o Ocidente foi doado por Constantino ao papa, então o imperador bizantino não poderia reclamar direito nenhum sobre os territórios ocidentais. [3]
Durante toda a Idade Média a Doação de Constantino foi dada como autentica. Alguns pensadores nos últimos séculos já falavam que o documento possuía algumas “ilegitimidades”, principalmente jurídicas. No século XV temos a publicação de uma obra que prova a falsidade da Doação de Constantino. Essa obra é Discurso sobre a falsa e enganadora doação de Constantino, de Lorenzo Valla. Esse autor, motivado por questões políticas da época, provou que o documento era ilegítimo devido a vários erros internos. Para muitos essa obra, Discurso sobre a falsa..., é uma precoce investigação critica dos documentos. [4]
Os documentos, ou as fontes são a matéria-prima do oficio do historiador. O trabalho do historiador se faz com as fontes, escritas ou não. O exemplo da Doação de Constantino é interessante e ilustrativo por alguns motivos. Por muito tempo foi considerado um documento verdadeiro, sendo usado por diversos autores medievais para a exposição e explicação de suas idéias.
A veracidade ou a falsidade de um documento não o desvaloriza perante o bom historiador, pois este poderá analisar no documento falso, como no nosso caso a Doação, as intenções de quem falsificou, o que estava acontecendo no momento histórico da falsificação, ou seja, o historiador faz uma verdadeira História da mentira com o documento falso, para tentar chegar a verdade histórica (algo muito discutível e discutido...). Na Doação de Constantino os historiadores analisam os mais diversos aspectos: políticos, históricos, filosóficos, culturais, até as mentalidades não escapam do olhar atento dos historiadores, tudo isso para compreender e explicar melhor a sociedade medieval.
O professor de História precisa mostrar aos seus alunos como o conhecimento histórico é produzido. Por tanto, é necessário que conheça certas questões de método e teoria. No caso de uma aula sobre Idade Média, principalmente quando o conteúdo é sobre as relações de poder no período medieval, é absolutamente necessário apresentar aos alunos as fontes e documentos próprios do período, para que o aluno possa também construir seu conhecimento sobre o assunto tratado.
BERTELLONI, Francisco. El pensamiento político papal en
BLOCH, Marc. Apologia da História ou O Oficio do Historiador.Tradução: André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2001.
FRANCO JUNIOR, Hilário. Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasilense, 2004.
GINZBURG, Carlo. Relações de força: História, retórica e prova.Tradução: Jonatas batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
[1] Esse período pode ser enquadrado também entre os séculos VIII e meados do XII. Não entrarei no mérito da questão da divisão e classificação da Idade Média em períodos, pois não é objetivo em questão no texto. Portanto, optei pela periodização mais geral.
[2] FRANCO JUNIOR, Hilário. A Idade Média. Nascimento do Ocidente. São Paulo: Brasilense, 2004. pp 57.
[3] BERTELLONI, Francisco. El pebsaniento político papal
[4] Ver o segundo capitulo de:GINZBURG, Carlo. Relações de força: História, retórica e prova. São Paulo: Cia das Letras, 2002.